sábado, 2 de março de 2013


Combate no Reino Eterno – Surfista Prateado contra Thor

(Stan Lee – roteiro; John Buscema – arte. Publicações no Brasil:
1-       Heróis da TV, n. 07, Ed. Abril, janeiro de 1980, págs. 03 a 43 (colorida);
2-       Grandes Herois Marvel n. 16,  Publicada Em 1987.
3-       Surfista Prateado – edição histórica, Ed. Mythos, 2003, págs. 123 a 161
Gazy Andraus[1]



Essa é uma das mais bem feitas HQ da chamada era de bronze dos personagens superpoderosos, tanto no roteiro como na arte extremamente bem desenhada. Os traços de John Buscema se mostram refinados e altamente plásticos dando sutileza e leveza ao Surfista Prateado, e detalhando tanto a Terra como o reino de Asgard com seus seres e divindades ao lado de Thor, transparecendo-lhe uma personalidade nobre realmente. Essa magistral história em quadrinhos é uma obra-prima e explora o filão da luta de heróis como chamariz, mas a perspectiva e psicologia dos personagens é minuciosamente explorada, principalmente a do Surfista Prateado, bem como a de Loki, causador e disseminador do confronto. A revista que publicou essa HQ no Brasil foi a “Heróis da TV“ de número 7 que me impactou à época pela beleza da capa na qual estampava-se um espaço sideral (com Asgard bem ao fundo) no qual aparecem os dois heróis principais a lutar. Este também foi o primeiro número que comprei da coleção, influenciado pela arte da capa e miolo. O formatinho ainda não era tão pequeno como foi ficando depois (este número foi o último antes de diminuir mais ainda o formato), e a revista era vistosa e bem grossa contendo 132 páginas além de outras HQ, em que destaco a do Punho de Ferro roteirizada por Len Wein e desenhada por Larry Hama, e outra do personagem Capitão Marvel (antes de sua metamorfose que ocorreria a partir do número 11 dessa estimada revista) roteirizada por Roy Thomas e excelentemente desenhada por Gil Kane e seu estilo único. Aliás, os desenhistas daquele período primavam por estilos pessoais cada qual, o que enriquecia sobremaneira o mercado editorial de histórias em quadrinhos de super-heróis. Infelizmente houve um período nos anos 90 em que as editoras norte-americanas não enxergavam essa riqueza que alimentava o imagético, pasteurizando muitos estilos e forçando desenhistas jovens e imaturos a imitarem um ou outro estilo que na verdade era péssimo e carente de equilíbrio e conhecimentos anatômicos. Por sorte, de anos para cá o rumo tem se aprumado e alguns artistas têm mantido seu estilo pessoal como Phil Gimenez, por exemplo, e outros novos que não tenho seguido, mas que vejo despontarem.


Voltemos à nossa HQ principal que aqui está sendo analisada, e que também foi publicada por mais duas vezes no Brasil, sendo que na terceira em preto e branco (numa edição em que o preto estava mais pra cinza, infelizmente). A HQ cujo título na Heróis da TV era “Combate no Reino Eterno“ foi originalmente publicada em Silver Surfer #4, datada de fevereiro de 1969! Pois bem, a primeira página que abre esta aventura na revista da editora Abril, traz ao trono um deus irado e obcecado lembrando outros vilões das artes, e até do humor, como o grão vizir Iznogud que foi cria de Tabary e roteirizado por Goscinny, justamente trazendo esses recalques e melindres atinentes a tal espírito obsessivo reiterante no rol das mentes perversas (mas que deixam escapar falhas psicológicas muito graves, tal como vemos em novelas e até na vida real – e que foram bem engendradas no roteiro do álbum de 2004  “Loki“ de Robert Rodi e Esad Ribic cuja edição luxuosa de capa dura mostrava um Loki também obcecado mas que finalmente alcança o poder derrubando e aprisionando Thor que quase não aparece no enredo). Essa, umas das mais inteligentes HQ que já li, recebeu atualmente pela Marvel uma versão animada por computador em 4 partes calcada na obra quadrinizada, mantendo a arte original. Loki sempre quis suplantar seu irmão Thor, destronando Odin e tomando o trono à força (tal qual Iznogud obcecado pelo califado, o qual nunca venceu à exceção de uma história que infelizmente não foi publicada no Brasil – mas que deu um fim tragicômico ao vilão que pensou se vangloriar sendo Califa). Também lembro o recente filme Thor, que trouxe à baila algumas reiterações que se encontram nessa versão nórdica adaptada por Stan Lee aos quadrinhos heroísticos.



Pois bem, o intuito do Surfista Prateado na HQ ora estudada, era se livrar do limite invisível imposto a ele por Galactus, que o aprisionou à órbita terrestre como castigo por ter-se rebelado (tendo tido o auxílio do Quarteto Fantástico), já que o gigante espacial queria devorar o planeta Terra. Convivendo com os seres humanos que defendeu do devorador de mundos, foi descobrindo que estes ainda estavam em fase de amadurecimento e por isso muitas vezes mal compreendiam suas ações e não conseguiam viver em paz, como era em seu planeta natal, onde vivia antes como Norrin Radd: Zenla, o planeta daquele que depois veio a se tornar o Surfista Prateado, era bem diferente da Terra, pois lá não havia violência, que ainda grassava em nosso mundo, motivo pelo qual viam o Surfista como um pária, e em vez de perceberem a ajuda que traria, o rechaçavam com violência, lembrando o que foi feito ao cristo cósmico há mais de dois mil anos (acerca dos Super-heróis e a visão espiritualista já publiquei o artigo "A questão espiritual em Thor, Surfista Prateado e Super-Homem“ que pode ser acessado no site Bigorna em  http://www.bigorna.net/index.php?secao=artigos&id=1280807495.Se quiserem se aprimorar, ainda há dois livros que falam dessa ligação dos super-seres norte-americanos ficcionais e sua aproximação ao mítico, e que podem ser encontrados numa busca pela Internet: um é o livro  “Nossos Deuses são super-heróis“ e o outro “Super-heróis, religiosidade e sociedade e cultura“). 



A magistral história "Combate no Reino Eterno" começa no espaço cósmico em que o Surfista buscando sua liberdade, mais uma vez despeja a amargura existencial ao léu sideral, tentando entender o imponderável e o insondável , até que é perturbado por Loki. Mas este lhe chega aos poucos, após sondar sua mente e descobrir seus mais intensos desejos e o que até então havia feito. Esses detalhes fazem a mente maquiavélica de Loki lucubrar um plano, o qual seria tentar levar o Surfista de encontro a seu irmão numa batalha que poderia ser ganha pelo ex-arauto de Galactus se fosse obscuramente ajudado por Loki, sem que aquele o notasse!



Cenas magistralmente desenhadas por John Buscema passam a emoção a que se encontravam os personagens, como no último quadrinho da página 4 da HQ, quando o Surfista aparece desenhado arremetendo a si mesmo contra  a barreira invisível imposta a ele por Galactus. A expressão de desespero em obter a passagem é transmitida pelo olhar que Buscema faz ao lânguido herói, enquanto a aura de Loki aparece abaixo a observar o intento...



Como se verifica na arte, o desenhista priorizou a forma atlética sem exagero nos corpos dos personagens, e abusou de variados ângulos, como na página seguinte em que o Surfista é rebatido pela barreira e se desconecta da prancha. Nas páginas 10 e 11 da HQ, o Surfista reflete ao lado de animais na floresta, quando Loki finalmente se apresenta. A seguir sucede-se uma luta entre ambos, obviamente provocada por Loki para testar seu oponente. Por fim, o vilão dissimula que encontrou quem procurava para por fim aos planos diabólicos de seu irmão Thor. Como o Surfista não conhecia nenhum deles, é facilmente ludibriado por uma visão arranjada por Loki, na qual se visualiza Thor como um conquistador que quer destronar seu próprio pai, Odin, com um exército pessoal de traidores. Assim, em retribuição ao auxílio, Loki promete ao Surfista livrá-lo da maldição de Galactus rompendo a barreira e permitindo-lhe que volte a seu planeta, uma vez realizada a missão. É desse modo que o Surfista Prateado adentra sozinho Asgard com a permissão de Heimdall, guardião da ponte do arco-iris (Bifrost), e é convidado a se instalar à mesa no almoço ao lado de Thor, que se recusa a lutar com o arauto do espaço, sem antes ouvir suas queixas durante a refeição grupal. A partir desse instante o Surfista começa a estranhar tudo isso, e antes que lhe ocorram mais considerações, a essência maléfica e invisível de Loki faz com que um dos guerreiros asgardianos atire uma espada diretamente contra o Surfista, que então imagina ter sido enganado por Thor e começa a lutar com todos ali presentes. Enquanto isso, Odin é avisado da batalha e solicitado a intervir, mas permanece inalterado, numa das passagens mais interessantes da história. Eis uma de suas falas:

 
“...ao estranho não cabe culpa alguma! São forças alheias à sua vontade que o impelem a atacar! Que a peleja continue! Dano algum pode provir de um combate, quando os corações são puros!”






Apesar de tudo parecer pueril na atualidade, sinto uma beleza extraordinária nessas histórias, o que correspondem às lendas de vários períodos da história humana. O filme El Cid trouxe mensagens belíssimas do que norteou a lenda que girou em torno do campeador espanhol que conseguiu expulsar parte dos mouros da Espanha e aglutinar novamente o reino que se fragmentava com reis brigando entre si e perdendo terreno aos árabes. Segundo a lenda (baseada em fatos que ocorreram), seu coração e coragem eram puros, e não tinha ganância, mas um senso de equidade inolvidável. Em uma das passagens que se conta desse mito, ele evitou o exílio de um dos filhos do rei, quando um deles ordenou a prisão de seu próprio irmão, para ficar com o trono, após a morte de seu pai. Mas El Cid não pendeu para nenhum dos lados, apenas fazia o que  sua consciência ditava: não podia auxiliar um dos príncipes em detrimento ao outro. Só ajudava quando via que um deles agia erroneamente contra o outro (pois há que se lembrar: Cid foi o campeador do Rei, o que quer dizer que era seu braço direito e protetor, portanto, uma vez morto o rei, seu campeador deveria proteger os príncipes). Em seguida, El Cid foi exilado porque foi o único do reino que ousou questionar um dos irmãos que acabou no trono, acerca de sua culpa (ou não) pela morte de seu outro irmão, apunhalado nas costas numa estranha emboscada. Tempos depois, Cid fez seu próprio exército e continuando a luta contra os mouros, recusou-se a se consagrar rei por conta própria, ainda que estimulado pelos seus companheiros, após tomar de volta com eles, um dos castelos que estavam sob a custódia dos mouros. E ainda fez um de seus cavaleiros levar a coroa reconquistada ao rei (que o havia exilado), para que entendesse que ele queria unificar a Espanha, e não guardava rancor desse jovem mas impetuoso monarca. Ao final, Cid, pouco antes de morrer devido a uma flecha recebida noutra posterior batalha, recebe a visita do rei, que arrependido de suas ações vai ao seu auxílio, lutar contra os mouros. Esta lenda (que faz parte de uma realidade ocorrida na Espanha moura), mostra que o ser humano que resguarda seus ideários, quão nobres sejam, e que se mantém fiel a eles, apesar de obstáculos, leva uma vida mais digna e justa, e de certa forma, consegue desenvolver suas tarefas ainda que com oposição (que não se mostra, então com esse exemplo, eterna, visto que o rei que odiava Cid resonsiderou e se arrependeu, quase que como um ensinamento dado por Cid – que realmente o ensinava a reinar: noutra das passagens anteriores, o então príncipe pede a Cid que mate um dos traidores numa emboscada que fizeram-lhes, quando o herói campeador interrompe e grita com o príncipe, dizendo que qualquer um pode tirar uma vida, mas só um rei verdadeiro pode mantê-la!). Mesmo que não faça muito sentido aos jovens da atualidade, entra em ação aqui a questão da justiça e das normas e regras cavaleirescas e nobres, que todo ser equânime possuía como parte de seu desenvolvimento (quem quiser, busque o livro ou o filme em DVD, pois é bem interessante).
De certa maneira, é da mesma forma que essa história em quadrinhos do Surfista Prateado contra Thor traz à baila (com a fala de Odin), a questão da pureza e da nobreza das intenções, apesar dos obstáculos que se interpõem no caminho dos heróicos e destemidos (mas justos como Cid) personagens...e que algo maior pode se suceder quando há mais em jogo.



Na referida batalha épica dos quadrinhos, quando finalmente o Surfista Prateado menciona Loki durante o furor da luta, Thor, ao ouvir o nome, questiona-o sobre o que sabe de seu irmão. A partir desse momento, a influência de Loki começa a ser debelada, e o vilão, ainda invisível, faz desaparecer o Surfista do reino asgardiano reportando-o novamente à área próxima do planeta Terra, no mesmo ponto onde se encontrava antes, pois Loki temia que seu plano fosse descoberto pelos asgardianos, que o puniriam. Nisso, Thor estranhando o sumiço, todavia, sente que a aura daquele ser reluzente e sua coragem impregnara o reino de uma forma distinta transformando tudo, após a luta. Enquanto isso, no último quadrinho da HQ, o Surfista novamente se autocomisera por se encontrar novamente preso à famigerada barreira, tendo perdido a esperança que havia sido prometida por Loki, por quem ele percebera ter sido maleficamente enganado e manipulado. Porém, em sua última fala, mantém a esperança de que um dia “os grilhões se partirão, e, por fim, o Surfista Prateado conhecerá outra vez a liberdade“.


Além dessa mensagem positiva do roteirista Stan lee, há de se salientar a maneira mais “culta“ de se narrar a história também nos balões de fala. As duas últimas páginas exemplificam bem isso quando Balder fala: “Se Thor estiver ferido, que o agressor se acautele“. Enquanto que na página seguinte Thor brada: “Protege-te Milady! Ele ataca novamente!“




Como se vê, esta HQ do Surfista Prateado foi produzida com esmero, sendo uma HQ de arte bela com um roteiro intrigante e reflexivo!

Ora, eu tinha 13 anos quando li tal história em quadrinhos. Somando aos ideários e mensagens de heroísmo, justeza e esperança que eu captava (e gostava), havia também uma escrita que (apesar de a tradução ser minimizada devido ao “formatinho“) me fazia lidar bem melhor com uma leitura mais correta e de fala mais complexa, incluindo palavras de outras línguas (“Milady“) e menos usadas (assim como verbos e suas variações como “se acautele“).
O que quero aqui mostrar é que houve HQs, mesmo que de Super-Heróis, de uma beleza ímpar! Essa aqui, nota-se claramente, teve mais esmero e cuidado em sua elaboração, tanto no roteiro como na arte perfeita, plástica e exuberante de Buscema (já falecido). Naquela época o gibi do Surfista Prateado tinha mais páginas que o usual, e não era mensal, motivo pelo qual os artistas tinham mais tempo para elaborar as histórias, com mais refinamento na arte. Pois é sabido que devido à contingência de lançar revistas mensais de personagens, a qualidade do desenho dos quadrinhos teve que ser simplificada, conforme salienta e questiona, entre outras razões, o texto “O desenho inferior das histórias em quadrinhos“, de Edgard Guimarães e publicado como encarte em seu último fanzine “QI # 119“. Quem conhece e aprecia desenhos, saberá do que falo, ao passar seu olhar pelos quadrinhos e pela arte do desenhista, com o refinamento dos ângulos que Buscema colocou nos personagens e a musculatura e perspectiva – precisa e plástica ao mesmo tempo. 
Como um exemplo final da qualidade de tais traços, reparem na plasticidade artística no quadrinho de uma das páginas iniciais em que Loki é visto do alto (câmera alta) e de costas sobre um prédio (vide imagem)...


Gazy Andraus, São vicente-SP, entre 2012 e março de 2013 (Imagens graças ao Aquiles grego: http://4sharedtrend.com/f/4475274/737_surfista_prateado_v1_005_gibihq_aquiles_grego_08jul09_br.html)



[1]Coordenador do Curso de pós em Docência no Ensino Superior da FIG-UNIMESP, Pesquisador do Observatório de Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Doutor em Ciências da Comunicação da ECA-USP (melhor tese de 2006 pelo HQMIX em 2007), Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, e autor de histórias em quadrinhos autorais adultas, de temática fantástico-filosófica.


sexta-feira, 1 de março de 2013

Abertura


Como leitor de HQ de super-herói na adolescência, vi que havia muitas HQ excelentes e pouco referenciadas na atualidade. Muitas passaram despercebidas.
Esse blog é para resgatar algumas delas, analisando um pouco a qualidade nos roteiros e arte, mas em especial as mensagens, como as do Surfista Prateado, em que o humanismo era latente, ou outras que tinham tons ecológicos (me lembro de uma história que saiu no antigo “Heróis da TV” da Editora Abril em que o Motoqueiro Fantasma salvava uns golfinhos de um homem revoltoso que os odiava). Portanto, havia HQ em que os plots principais não eram essa briga eterna entre heróis e universo, como na atualidade. Noutra HQ, o Homem-Aranha visita um menino que é seu fã, mas que está quase à beira da morte no hospital, em estado terminal de seu câncer. E ele morre, ao fim. Assim como noutra aventura o mesmo cabeça de teia auxilia um agrupamento de bombeiros a conter um prédio em chamas...e um dos bombeiros morre, deixando uma reflexão maior na mente do heróis (e para o leitor) de que os heróis reais eram mesmo aqueles que lutavam contra o fogo, os bombeiros! Havia simplicidade em muitas HQ, mas os tons no conteúdo, de mensagens salutares (a meu ver) apareciam em algumas daquelas HQ.
Porém, advirto que aqui não haverá apenas textos sobre tal estilo (super-herói) mas também de outros que possivelmente me deixaram marcas, como exemplo, o álbum “O Homem é bom?” de Moebius, entre outros como HQ cósmicas do autor também francês Caza etc.
Assim, resolvi iniciar minha série de escritos acerca dessas histórias que me marcaram iniciando aqui com uma BD do motoqueiro Fantasma, na qual que ele tem um duelo com a Morte!

Abraço e boa leitura.
Gazy Andraus, São Vicente-SP, 01/03/2013

A morte como prêmio – Motoqueiro fantasma


(Autoria e publicação: Jim Starlin: Almanaque do Capitão América, n. 31, Ed. Abril, dez. 1981, págs. 25-40)

As histórias em quadrinhos têm vários nichos e temas. Um dos mais conhecidos é o dos heróis, ou mais especificamente, dos super-seres, que, tal quais as tradições mitológicas gregas, romanas, nórdicas, asiáticas e outras, trazem seres similares aos humanos em emoção, porém com poderes extraordinários, e feitos que devem ser cumpridos como símbolos de tarefas necessárias ao desenvolvimento e aprimoramento, conforme Joseph Campbell explicou em suas teorizações do mito.
No universo dos super-heróis, nenhum país do planeta conseguiu se igualar às criações dos norte-americanos, como arquétipos daquela nação (mas não só), principalmente criados para as duas maiores editoras do planeta, a Marvel e a DC.
E eu, como leitor na adolescência principalmente dessas histórias, fui muito influenciado no desenvolvimento artistico dos desenhos cujos estilos variavam enormemente, como pelas éticas e morais que norteavam os personagens, cujos criadores decerto também se compraziam em desenvolvê-los. Apesar das mudanças sociais que foram moldando as últimas décadas, tornando esse gênero de quadrinhos cada vez mais realista, ao mesmo tempo que menos maniqueísta, há grandes histórias no sentido de roteiros inteligentes e cativantes, usando os personagens como mestres-guias para o desenvolvimento de mensagens de conteúdos nobres. Foi o caso de muitas HQ como as do mestre do Kung Fu, escritas por Doug Moench, ou a universalidade e minimização de preconceitos com as equipes de heróis, tais como X-Men (Marvel), cuja segunda formação original tinha membros africanos, soviéticos, irlandeses etc, e da Legião de Super-Heróis (DC), cujos integrantes eram oriundos de divresos planetas fictícios. Outros, como Capitão Marvel (da Marvel) tiveram alguns arcos de história memoráveis escritos e desenhados pelo saudoso Jim Starlin (que chegou a matar o herói de câncer…doença que acometeu o pai do artista).
Nesta linha é que pretendo escrever (e ressuscitar) HQ desses naipes que muito me marcaram e ajudaram – repito – na minha formação artística e mental.
Para começar quero escrever sobre uma HQ da personagem Motoqueiro Fantasma publicada no Brasil em 1981, roteirizada e desenhada pelo já mencionado Jim Starlin.  O título em português da HQ é A Morte como prêmio (mais uma vez o fantasma da morte nas HQ desse autor).




 


Porém dessa vez, é um pouco diferente. A história começa com Johnny Blaze pilotando sua moto enquanto reflete sobre sua angústia de ter feito um pacto com Satã, quando repentinamente se vê obrigado a brecar sua moto já que um sujeito se postou bem à frente dele na estrada. Sem perda de tempo, a misteriosa figura se apresenta como a personificação (em forma de caveira mítica) da Morte e pede um desafio ao herói amargurado, com a justificativa de que se cansou das bravatas que Blaze vive lançando contra a morte.
Ela define o concurso em 3 desafios: no primeiro, quem alcançar um motociclista que se encontra a 8 km fica com sua vida…mas Blaze o alcança pouco depois da Morte e vê o homem ser pulverizado quando ela o toca.



O segundo desafio é alcançar uma garotinha perdida de seus pais a 6 km de onde ambos se encontram. Dessa vez, o Motoqueiro Fantasma, para não perder a prova, utiliza-se de um caminho diferente quando vê a menina, cruzando a moto da Morte por cima de um desfiladeiro alcançando-a desesperadamente antes do toque mortal! O último desafio, como Blaze já desconfiara, era sua própria vida: nessa última corrida, o primeiro que alcançasse um cume de uma montanha, sairia vitorioso (a Morte o levaria, ou Blaze conservaria sua vida). Enfim, no percurso, a Morte quase alcança Blaze e vai ultrapassá-lo quando este reflete que as regras foram feitas por ela, e que embora ele hesitasse em usar de subterfúgios desonestos, nesse caso era sua vida que estava em jogo, e sendo a Morte não exatamente uma pessoa, decide enfiar o pé na moto da oponente desequilibrando-a e a fazendo cair do desfiladeiro enquanto Johnny Blaze alcança o cume salvaguardando sua vida.
Em sua última reflexão põe em xeque quantas vezes ainda ele desafiaria a morte…o que pode ser verificado como uma alusão ao estilo de vida que ele leva: perigoso demais!
Assim, Starlin quebra um pouco o padrão de histórias continuadas como novelas, inserindo um plot interessante que pode metaforizar os percalços de cada um de nós e o que fazemos para vencê-los: ora perdendo (quando ele não consegue salvar a vida do primeiro homem), ora vencendo como herói (mantendo a vida da garotinha), e um outro momento tendo que enfrentar e decidir ações em situações de extremo cuidado e rapidez de decisão. Nossas vidas têm estes teores, sejam quais forem nossas profissões: Starlin era mestre em nos colocar a encarar os domínios e liames entre a vida e a morte (vide seu Capitão Marvel e Thanos que buscava o amor da Morte).
Enfim, esta é uma HQ de arte bela com um roteiro intrigante e reflexivo!

Gazy Andraus[1]

[1]Coordenador do Curso de pós em Docêncioa no Ensino Superior da FIG-UNIMESP, Pesquisador do Observatório de Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Doutor em Ciências da Comunicação da ECA-USP (melhor tese de 2006 pelo HQMIX em 2007), Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, e autor de histórias em quadrinhos autorais adultas, de temática fantástico-filosófica.